quarta-feira, novembro 16, 2005

Recording a Tape the Colour of the Light

Bell Orchestre, Recording a Tape the Colour of the Light
Bell Orchestre
Recording a Tape the Colour of the Light
Rough Trade, 2005

Maio de 1994. O crítico inglês Simon Reynolds regista o termo “post-rock” no catálogo dos estilos musicais. Escreve então na revista “Wire”: post-rock é um tipo de música “using rock instrumentation for non-rock purposes, using guitars as facilitators of timbres and textures rather than riffs and power chords”. Sendo a forma de rock experimental dominante na década de 90, o post-rock recebe influência de vários e diferentes estilos: kraut, ambient e prog-rock, space e math-rock, clássica minimalista, jazz, dub, só para nomear alguns dos mais importantes. A unir toda esta diversidade, a instrumentação habitual do rock é aqui misturada, quase sempre, com elementos aglutinadores de electrónica. Como em todos os estilos musicais, o termo aplica-se a um largo espectro de bandas, nem sempre portadoras de grandes semelhanças entre si. Tortoise, Mogwai e Stereolab até podem ter pouco em comum, mas há certamente uma característica convergente, o facto da sua música ser predominantemente instrumental.
Posto este ponto de cultura prévia, já devem ter adivinhado, o meu disco de hoje pode ser encontrado na prateleira junto aos dos Sigur Rós, GYBE! e Bark Psychosis. O facto de o post-rock ser um dos meus estilos favoritos – ao lado do Chamber Pop – pode ser esquecido por agora…
“Recording a Tape the Colour of the Light” é o disco de estreia dos Bell Orchestre, um sexteto de Montréal do qual fazem parte Richard Parry e Sarah Neufeld dos Arcade Fire. A áurea da cidade canadiana, mítica para os amantes do post-rock (e não só…), constitui desde já motivo de sobra para deixar cair as mãos neste disco.
A música dos Bell Orchestre tem tanto de cinemático, como de improviso. Se por um lado existem temas onde o espaço é constituído por paisagens sonoras de uma voluptuosidade ténue e sombria, exibem-se outros que parecem ter nascido de uma mistura cacofónica de instrumentos realizada de forma pura e crua no sótão lá de casa. E a colecção de instrumentos surpreende: à parte da habitual micro-orquestra de cordas e dos instrumentos chaves do rock há a matricular uma série de trompas subaquáticas, um par de máquinas de escrever, alguns sinos, assobios e uns poucos xilofones. E há ainda electrónica a modular e a incutir carácter a tudo isto.
O tema recorrente “Recording a Tunnel” – aparece três vezes durante o disco – constitui um magnífico ponto de partida para esta aventura. Uma melodia simples, de três notas, tocada pela trompa e gravada, claro está, dentro de um túnel. Segue-se “Les Lumieres Pt. 1” construída de novo sobre um tema simples, desta vez no saxofone. À medida que o tema evolui cada novo instrumento introduz mais um pouco de sabor ao cozinhado, procurando o equilíbrio perfeito entre doce e amargo. Por volta dos cinco minutos, o improviso começa aos poucos a tomar conta da casa preparando-nos para o que a exuberância que aí vem. “Les Lumieres Pt. 2” transforma as margens calmas do tema predecessor e mergulha directamente no universo rock, não obstante a instrumentação particular que se vai ouvindo. Várias camadas nas trompas, cordas de uma energia frenética e uma batida rápida e cheia de carga. A transição para o tema seguinte dá-se com auxílio a sinos e sirenes. Ao frenesim das cordas junta-se a distorção dos sopros, enquanto o cavalo continua o seu furioso galope em direcção à vasta planície e à acalmia do lago lá mais à frente. Serenidade que chega enfim nos acordes wagnerianos das trompas e no ritmo ferroviário das cordas. Esta sequência de temas encerra um capítulo no disco e traz-nos à memória os vizinhos Godspeed You Black Emperor!, embora num registo mais alegre. Enquanto os GYBE! percorrem paisagens de uma devastação quase desértica, onde os cinzentos do chão se confundem com os do horizonte, os Bell Orchestre cavalgam através de quadros de uma beleza rústica, impressionista.
Na segunda parte do álbum, iniciada com uma nova versão de “Recording a Tunnel”, os temas tendem a soltar-se do espírito rock e aproximam-se de um registo mais clássico, cinemático, onde sons e estruturas surgem de uma forma mais experimental. A percussão marcial de “Nuevo” é exemplo feliz de uma outra perspectiva sonora.
Este disco não foi feito para impressionar. Pelo contrário, penso que pretende conquistar-nos pela sua ténue simplicidade. Talvez por isso os seus temas tenham uma característica forte: concisão. Poucos são os temas que vão além dos quatro minutos, algo nada usual numa banda post-rock. Mas talvez seja essa a chave que faz deste disco constante presença no meu creative zen. É que a repetida audição deste trabalho, em vez de cansar, permite descobertas e renovadas emoções.

terça-feira, novembro 08, 2005

Belle e Sebastião

Belle & Sebastian, If You're Feeling Sinister Belle & Sebastian, The Boy With the Arab Strap
Belle & Sebastian
If You're Feeling Sinister/The Boy With the Arab Strap
Matador, 1997/1998

Isto de ser pai – ou de estar nos trinta, pois ainda não descobri qual dos dois – muda muito a nossa maneira de sentir as coisas. E quem diz sentir, diz ouvir. Ser pai não é só mudar fraldas, atirar o puto ao ar e dar colinho contra a vontade dos avós. Ser pai é redescobrir a beleza numa série de coisas onde antes só se distinguia a forma.
Aqui há uns anos, o meu bom amigo t., na sua incessante tarefa de me educar musicalmente (fora do reino da “minha” música clássica), era constantemente caçoado por andar a ouvir uma banda que fazia música para miúdos. Ainda por cima, cantada por um gajo com voz melosa de puto mimado. Uma autêntica criancice.
Hoje, tenho de dar a mão à palmatória (ouch!), os Belle & Sebastian fazem parte da irmandade das minhas bandas favoritas.
O nome da banda, todos os da minha geração recordarão, foi surripiada à série francesa de desenhos animados sobre um miúdo e seu cão que nos fazia colar ao sofá nas tardinhas da década de 80. E a delicada inocência desta amizade está bem presente na música deste octeto de Glasgow.
Liderados pelo guitarrista/cantor Stuart Murdoch, os B&S oferecem um som de uma intimidade majestosa, que tem tanto da Pop dos anos 60, como do Indie e da Folk dos anos 90. São criadores de melodias cheias de corpo, óptimas para cantar no carro a caminho do emprego, perfeitas para contemplar ao fim do dia com um copo de Porto na mão. E depois há as letras…
Desta vez decidi fazer um two in one e apresentar dois álbuns chave do percurso musical dos B&S: “If You’re Feeling Sinister” de 1997 e “The Boy With the Arab Strap” de 1998.
Os álbuns têm características diferentes: o primeiro, revela uma escrita mais coesa, com canções a habitar um espaço comum e mais pessoal, enquanto o segundo apresenta um espectro alargado de sonoridades, onde há lugar a novas descobertas e a um contacto mais próximo com todos os elementos da banda. Em comum, as letras aguçadas e inteligentes de Murdoch, sempre polvilhadas de um senso de humor radioso… e às vezes cínico. “Nobody writes them like they used to, so it may as well be me” canta Murdoch em “Get Me Away From Here, I’m Dying”. Presente nos dois discos estão ainda o acústico das guitarras e a sumptuosidade das cordas, tocadas aqui e ali com acordes de trompa a construir um simples mas perfeito cortejo musical.
A iniciar o meu best of das faixas destes álbuns está “Me and the Major” com o seu cavalgante ritmo de harmónica e harmonias perfeitas na voz quebradiça de Murdoch. Segue-se “Like Dylan in the Movies”, no que poderia ser uma mistura fina entre Lou Reed e Lloyd Cole. A faixa que dá título ao álbum de 1997 é uma das minhas favoritas da banda. “She was into S&M and bible studies. Not everyone's cup of tea she would admit to me”. A letra mostra tudo o que Murdoch é capaz de fazer e a música resume em pouco mais de cinco minutos toda a delicada essência dos B&S. Deste álbum gostava ainda que ouvissem “Mayfly” com uma pop de alegria contagiante, guitarra à anos 60 e um brilhante solo de sax a dar corpo a uma canção cheia de espírito.
O primeiro tema de “The Boy with the Arab Strap” apresenta-nos uma história de argumento forte, cantado de forma tímida, a lembrar o período tardio de Simon & Garfunkel. Segue-se “Sleep the Clock Around” com os seus ondulantes sintetizadores e sons metálicos de gaitas de foles a alargar a paleta sonora da banda. Há ainda tempo para uma sofisticação melódica digna de Burt Bacharach em “Ease Your Feet in the Sea” e “A Summer Wasting” antes de chegar ao épico “Seymour Stein”, bem ao jeito do melhor John Lennon. E por aí fora, que as canções deste álbum mais parecem uma colecção dos melhores cromos da folk-pop.
E tudo isto são os Belle & Sebastian, excelentes na criação de uma pop perfeita, pura e pastoral, senhores de uma refinada sensibilidade lírica.
E agora tenho de ir. O pequeno João aceitou a desmedida tarefa de salvar o mundo e teima que eu lhe dê a mão.